A preto e branco.
O vestido que aparecia na velha fotografia era de uma tonalidade sombria de cinzento-escuro, quase a raiar o preto, apesar de Roland saber que, na verdade, era antes de um vermelho escuro, da cor das rosas no alpendre, que plantara unicamente para ela, e que a deixaram com os olhos sorridentes e uma expressão luminosa no rosto no dia em que usara esse vestido.
Aliás, colocado de forma descuidada e selvagem no seu colo, na fotografia, estava também um enorme ramo de rosas semelhantes, presente dele para a ocasião.
Na imagem, recordava Roland com cuidado e pormenor, nada do que surgia era propriamente verdade: o vestido apresentava outra cor, as rosas mostravam uma sombra do esplendor que realmente tinham tido, o seu rosto vivo e sorridente era hoje estático, branco como cera, com as pálpebras ligeiramente roxas da dor, da doença, do desgosto e da insónia, frio como gelo e, inquestionavelmente, morto.
Annaleah estava morta há mais de 50 anos.
Roland mantivera-se viúvo e solitário todo esse tempo, conservando intacta a sua memória, o seu rosto de porcelana pura, os longos cabelos negros e perfumados com alfazema e algo mais, que apanhava de forma demasiado puritana atrás da cabeça, quase uma blasfémia para cabelos tão divinais, as suas mãos tépidas, macias e harmoniosas, os seus olhos pretos como a noite. Era assim que a via cada vez que fechava os olhos, e parecia-lhe que ela se encontrava mesmo a seu lado, sentada na sua poltrona habitual.
Cuidara das duas filhas de ambos – Susan e Sylvia – ajudara-as a crescer, educara-as, nunca lhes faltara com nada, e isso havia-o mantido deveras ocupado.
Apesar de tudo, não pensara em substituí-la.
Ao contrário do que ela pensava.
Era estranho vê-la agora da mesma maneira, passado todo este tempo.
Intacta.
Como se a tivessem acabado de depositar no féretro escuro.
Como se as crianças ainda agora tivessem perguntado porque é que a mãe não acordava, e porque estava tanta gente estranha e bem vestida em casa.
Como se ainda ontem tivesse plantado a maldita roseira que causara toda aquela maldita desgraça e que lhe cravara os espinhos maldosos nas mãos.
Mas não.
50 anos tinham passado.
Ele envelhecera.
As miúdas cresceram, e começavam também elas a envelhecer.
A roseira, essa, crescia a olhos vistos, cada dia mais forte, cada dia mais robusta, cada dia mais poderosa, a escarnecê-lo.
E Annaleah…
Fora necessário, ao fim de todos estes anos, exumar o seu corpo.
Theresa confessara, no leito de morte.
Ele já calculava.
Era algo que pretendia fazer, quando chegasse a sua hora.
Não queria ir para o Outro Lado com aquele peso.
Mas não calculara que Theresa fosse primeiro que ele.
Não calculara que fosse possível provar uma suposição absurda daquelas.
Não calculara que levassem o assunto a sério. Não depois de todo este tempo.
Não calculara que o corpo de Annaleah estivesse incorrupto, como o de uma santa, ou de um mártir, e que permitisse prová-lo com tanta facilidade.
Causa de morte: envenenamento.
E qualquer coisa mais.
Afinal, o facto de o marido e a sua irmã congeminarem juntos a sua morte deve ter tido algum peso no caso.
A gota de água fora, precisamente, a roseira.
No dia do aniversário de Annaleah, o dia da fotografia, Roland plantara a roseira, e trouxera duas dúzias para presentear a mulher.
Theresa, ao vê-lo chegar, invejou as rosas com todo o seu ser.
Duas dúzias! Lindas. Rubras. De causar toda a espécie de sentimentos luxuriosos.
Theresa queria a roseira para si.
Quis mais que isso, naquele dia.
Inevitavelmente, Annaleah estava a mais.
Roland olhou para a única fotografia que trouxera.
Colocou-a na mesa ao lado da sua cama, a ver como se encaixava naquele buraco. Da última cama que alguma vez teria.
Estava velho.
Muito velho.
Passou as mãos enrugadas pela face exausta.
E, mesmo assim, tivera de vestir aquela roupa preta e branca, suja, dura, o tecido deprimente de um estabelecimento prisional.
Até à sua morte.
A sentença fora clara.
Era impossível sair dali com vida.
Foram buscá-lo a casa, como se aquela se tratasse apenas de uma visita de cortesia. Os seus colegas de trabalho, amigos de longa data, gente que sempre o considerara incorrupto.
Mal sabiam eles que o crime mais macabro da cidade havia sido o dele…
Maldita roseira, a escarnecê-lo nas costas, enquanto o levavam.
Teve vontade de agarrar no machado e arrancá-la aos pedaços, de a destruir, de a estraçalhar.
As filhas nunca lhe haviam permitido arrancá-la.
Lembrava a mãe, diziam.
Crescera o suficiente para cobrir a fachada da casa branca, como uma mancha de sangue criminoso, fazendo-o lembrar do seu crime todos os dias.
Mas agora já não.
Agora, podia respirar livremente.
O corpo preso, mas a alma livre daquele espectro da roseira a espreitá-lo todos os dias.
Deitou-se serenamente no catre duro, com a fotografia encostada ao peito, inspirou fundo, sorriu descansado, e fechou os olhos calmamente.
E já não os voltou a abrir.
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